O anjo da hecceidade contra o demônio da distração
Exígua retrospectiva pessoal de 2024, o ano em que todos nos cansamos da internet.
Uma das idéias mais poderosas que ouvi em 2024 foi a de que nosso cérebro não se encontra só na caixa do crânio: o órgão se estende por todo o nosso corpo em suas ramificações nervosas. O mesmo pode ser dito do coração em sua expansão através das artérias e das veias. E a partir daí a visão melhora: onde estão nossas terminações nervosas, aí está nosso sangue. E chego à concreção daquele ideal antigo de unificar a razão ao amor. O corpo inteiro pensa, na medida em que o corpo inteiro sente.
E por falar em retrospectiva, uma das palavras do ano foi DOPAMINA, o hormônio que regula a felicidade, a saciedade dos desejos. O modo como o uso de redes sociais bagunça o fluxo da substância, alterando o humor a ponto de disparar gatilhos de depressão e de ansiedade, foi o que a tornou tão repetida. Inclusive, nos últimos dias vi aumentar a freqüência de anúncios de infoprodutos vendendo técnicas para dar um jeito no tal hormônio, aproveitando as ansiedades próprias da virada do ano.
Menos atenção se deu quanto ao que o hábito de redes provoca em nossa inteligência. Quer dizer, até se deu muita, mas não tanto quanto ao esgotamento emocional causado pelos algoritmos. Agora mesmo, enquanto folheava minha edição de Fantasmas da minha vida, de Mark Fisher (uma das leituras mais marcantes do ano), procurando uma citação para esta carta, encontro um trecho que tem a ver com os dois pontos, os efeitos negativos das redes no humor e na inteligência:
Me lembro da argumentação de Franco Berardi sobre a relação entre a sobrecarga de informação e a depressão. O argumento de Berardi não é que a explosão das .com tenha causado a depressão, mas o contrário: a explosão foi causada pela pressão excessiva colocada no sistema nervoso das pessoas por novas tecnologias de informação. Agora, mais de uma década após essa explosão, a densidade dos dados aumentou enormemente. O operário paradigmático passa a ser o operário de telemarketing — o ciborgue banal, punido sempre que se desconecte da matriz comunicativa.
Passei boa parte do ano lutando contra esse problema: combate entre vício no Twitter (e eu só me lembro do David Foster Wallace viciado em televisão, que muito o angustiava, mas que lhe deu rico material para reflexão a ser devidamente usado em sua ficção e ensaística), o ódio ao Instagram e a necessidade de divulgar meus trabalhos na internet. Comecei uma série de textos diários no IG sobre essa questão, cheguei a repostá-los nas Notas daqui do Substack, porém não concluí, abandonei-a na metade.
Ali eu queria juntar um depoimento pessoal, a partir da minha experiência com ansiedade e depressão, às críticas que foram se avolumando durante o ano na direitosfera virtual. Era uma meditação também sobre cultura, sobre teoria da informação, queria falar do impacto que o Isto é água do DFW provocou em mim, em como encontrei a resposta à questão principal desse discurso de formatura anos depois no livro Conhecimento por presença (ensaio de Ronald Robson sobre Olavo de Carvalho).Queria também ligar essas críticas a pontos que Mark Fisher trabalhou de forma muito equivocada em seu já citado livro, complementar o argumento com reflexões de Simone Weil acerca das relações entre cultura e atenção (cultura serve para que nós afinemos a capacidade de atenção para o que realmente importa) e de Wolfgang Smith sobre o demônio da distração (se nossa vida espiritual depende da integridade de nosso ser no foco que é Cristo, então uma atenção que a toda hora é desviada por distrações fúteis é análoga a uma alma que é possuída por uma multidão de demônio, Legião).
Não sei se darei fim àquela série, só sei que abandonei-a na metade quando consegui expurgar uma série de tormentos que vinham me paralizando a vontade. Um amigo até chegou a comentar, lá no Instagram, do quanto que é comum que autores usem a escrita com objetivo de cura. Se houve alguma cura aí, deu-se ao superar essa angústia com as redes socias, e poder voltar a atenção ao que fortalece a consciência, como, por exemplo. os estudos que apresentei num curso (Desvendando a Narrativa Iniciática dOs Lusíadas).
Essa pesquisa do clássico provou para mim de uma vez por todas como a atenção conínua a uma obra de alto valor artístico também é um exercício terapêutico, naquele alto sentido terapêutico que buscavam os filósofos e humanistas na entrega amorosa a um grande livro. Ainda preciso mandar a última aula, para encerrar esse ciclo, e aproveitarei a ocasião para complementar o que falo nesta carta.
Se for para fazer resoluções para o ano, que se faça uma só. Listas de dez resoluções servem só para gerar frustração, e frustração é um belo de um fator propiciador de ansiedade. A minha resolução pessoal é afinar mais ainda, através da cultura e da fé, essa capacidade de atenção. Afinal, lá naqueles textos no Instagram eu partia da depressão enquanto excesso de passado na consciência, e da ansiedade enquanto excesso de futuro, os dois distúrbios impedindo-nos a vivência do presente, o estarmos presentes, a aceitação da Presença.
E eu nem ia escrever esta carta aqui. Poém um amigo, ao me falar mais uma vez de uma discussão imbecil na internet, logo após eu mesmo ter visto uma discussão igualmente imbecil no Twitter, deu-me vontade de “pregar” a necessidade de se deixar de gastar energia nessa atenção contínua a idiotices.
Só me lembrei de uma esotérica maluca falando uma verdade, a de que não é qualquer deus que merece alimentar-se de nosso sangue.
E quero encerrar com o trecho do livro do Mark Fisher, na verdade uma resposta do músico experimental John Foxx em entrevista. Publico aqui tendo em vista os exercícios que Olavo de Carvalho recomendava no COF para aprimorarmos nossa personalidade em torno do senso de presença, uma vez que o conhecimento dos grandes autores não é o ponto mais alto da educação liberal ideal, pois está imediatamente abaixo da contemplação amorosa da realidade.
Mas muito mais agitado e estranho, o presente é aquele modo do numinoso que ‘inunda como uma maré suave, impregnando a mente com um clima de adoração mais profunda’ [aqui é uma citação de O sagrado, de Rudolf Otto]. […]
O conceito de hecceidade de Duns Scottus — ‘aqui e agora’ — parece particularmente apropriado. Deleuze e Guattari se apoderam disso em Mil platôs como um modo despersonalizado de indivíduo em que tudo — o sopro do vento, a qualidade da luz — desempenha um papel. Um certo uso de cinema — pense, particularmente, em Kubrick e Tarkovsky — parece especialmente estabelecido para nos sintonizar com a hecceidade, assim como a polaroid, uma captura de uma hecceidade que é, ela mesma, uma hecceidade.