Outra vida
Em que falo sobre uma proposta de caminho intelectual criativo livre das instuituições autorizadas
O pesquisador independente
Fiz uma listinha de leituras marcantes de 2024 e postei no Twitter, mas deixei de fora um que ficou o tempo todo na minha mesa de trabalho. O livro é um manual prático, como esses que a gente vê sempre anunciado nas redes sociais. Trata-se de The Independent Scholar, do Justin Murphy.
Poderia falar da jornada de Murphy, porém direi um básico só. Sua virada para um caminho de criação intelectual independente da Academia tem interesse próprio, valeria uma postagem inteira; mas quero focar no manual.
Após ter problemas profissionais e tentativas de “cancelamento” devido a algumas falas, decidiu sair do cargo na universidade para experimentar na internet formas de produzir conhecimento relevante e livre, e conseguir viver do trabalho intelectual. Foi assim que pôs no ar empreendimentos como Other Life, onde publica seus escritos. Além disso, tem um podcast, mantém um fórum em que orienta outros pesquisadores nesse caminho, profere cursos e publica livros.
Quem me deu notícia do Murphy foi o Ronald Robson, que já vinha pondo em prática experimentos afins ao espírito de Other Life. A propósito, recomendo muito o que ele vem fazendo em Convivium. Ouso dizer que não há nada tão relevante e original sendo proposto em instituições oficiais brasileiras quanto a revisão da modernidade e do projeto humanista que vem apresentando nos cursos desse ciclo. E o que ele promete com o FLUSSER_project é impressionante.
O que eu quero tratar um tanto é acerca pontos da proposta de Murphy porque imagino que seria bom se mais pessoas fizessem algo assim no Brasil. Murphy tem chamado atenção com seu Other life, até porque o mal estar com as universidades não é sentimento exclusivo dos brasileiros. Como bem já tratou Ronald em seus cursos, hoje vivemos algo parecido com a transição da escolástica para a modernidade, quando um desgaste de possibilidades de criação afetou o ensino universitário, enquanto que o advento de tecnologias (a prensa de Gutenberg, por exemplo) e novas realidades sociais (a urbanização, o comércio) permitiu que surgissem formas de expressão e circuitos de circulação de conhecimento diversos aos de antes. Pois agora o ciclo intelectual moderno se escota com o engessamento da burocracia universitária, as universidades reduzidas a espaços de concentração de poder, carreirismo e nascedouros de militâncias ideológicas, enquanto que a internet e a informática em geral dão ao mundo possibilidades incomensuráveis e imprevisíveis.
No ano passado tentei algo nesse sentido, em meu curso Desvendando a Narrativa Iniciática dOs Lusíadas. Uma série de questões da vida me impediu de levar o projeto conforme eu previa, e por isso decidi não propor nenhum curso novo neste ano, ao menos enquanto alguns obstáculos de foro privado não forem superados. Enfim, o curso está a ser finalizado, um ensaio longo sobre o tema se encontra em processo de escrita. Inspirado pelo que Robson e Murphy andam fazendo, pretendo dedicar boa parte dos próximo meses desta newsletter a falar do processo, seja postando trechos do ensaio, mandando cartas sobre temas afins, ou publicando meditações sobre o desafio de se tornar um pesquisador independente.
As propostas de Murphy
Já no inicio do livro ele responde à pergunta “Isto serve para quem?” com três requisitos: i. para quem é chamado a construir um “body of work” (sobre isso falo mais à frente), ii. para quem quer viver tranquilamente, com independência das instituições, e iii. para quem acredita em verdade e beleza antes de fama e dinheiro.
Fundado em tais princípios, o PhD dá várias dicas. Usar redes sociais ao mínimo para desocupar a mente e criar com qualidade e constância. Manter uma rotina de leitura (2h/dia), escrita (2h/dia) e publicação (1 a 3 entradas por semana através de um dispostivo como o Substack em que publico). Criação de uma marca pessoal. Como automatizar algumas tarefas e monetizar seu trabalho. Que formas publicar segundo as plataformas disponíveis de microblogging e disparo de newsletters. A idéia é criar a partir das leituras dos clássicos.
O programa de publicações que vai guiar os próximos meses desta minha newsletter já é orientada por uma de suas propostas, a de seguir uma plano de pesquisa. A estratégia consiste em escolher um autor clássico, podendo ser só uma obra dele e, a partir de uma leitura profunda, criar. Claro que a proposta pode ser levada numa pesquisa mais ampla, de um problema que necessite de ser realizado num tipo de pesquisa mais tradicional. Depois de alguns meses focado na agenda, pode-se escrever um livro e/ou vender um curso explorando o tema. No meu caso, eu já proferi um curso conjugando meditação pessoal em torno de uma obra com resolução de problema acadêmico (tento dar uma resposta a uma questão acerca do sentido dOs Lusíadas que agitou alguns nomes grandes da camonística). O que farei a partir de agora é me focar na escrita de um ensaio longo apresentando os resultados desse trabalho.
Todas as propostas do programa me parecem bastante aplicáveis, embora exijam algum tempo para que a máquina ande sozinha e o pesquisador possa viver do seu trabalo sem se atrelar a uma faculdade. Nos EUA tem dado certo para vários estudiosos, mas sabemos como aqui no Brasil o buraco é mais embaixo. Mas acho que, se o amigo leitor contempla os três requisitos, creio que valha a pena tentar.
Para quem não sabe, body of work é uma expressão que significa o conjunto de trabalhos, obras ou repertório de um indivíduo. Pode ser a coleção de contribuições profissionais, intelectuais ou criativas de uma pessoa, como livros, performances, pinturas ou artigos de pesquisa. A expressão se refere não apenas às peças individuais, mas também aos temas, evolução e impacto. Trabalhar em um body of work exige compromisso e consistência, o que permite que o resultado final demonstre a capacidade, estilo e voz do artista ou pesquisador. O body of work pode ser um portfólio que mostra a capacidade de criar coesão dentro de uma ideia.
Esses requisitos tratam de vocação, de escolha de vida, da possibilidade de uma outra vida. Body of work em si já contempla unidade no tempo, persistência aliada à consistência em torno de ações contínuas e descontínuas nascendo e nutrindo-se dessa vontade criadora.
Note que Murphy fala em crer mais em beleza e verdade que em fama e dinheiro, sem excluir estes dois: a divulgação e o sustento devem servir à obra, e não é a obra que deva se sujeitar aos baixos instintos de uma audiência ampla demais. Tanto que o programa também trata do crescimento orgânico do projeto, de modos de divulgação para buscar um público qualificado e numeroso o suficiente não para deixar a pessoa rica, mas para sustentar sua nova vida.
Murphy disse recentemente num tweet que se deve temer uma fama instantânea sem uma obra sólida por trás. Há algo de satânico nisso, na grande premiação à falta de esforço, de trabalho. Fora que, se vem fácil, vai fácil, e o infoprodutor vai passar mais tempo gastando energia mental em criar estratégias agressivas e disruptitvas para capturar a atenção de clientes e manter sua fortuna, do que realmente em criar uma obra sólida. Trocar a cultura pela propaganda.
A forma de escrita, baseada na tradição do ensaio, será o elemento principal nesse caminho. A ideia não é replicar as formas acadêmicas caducas de artigos e teses eruditas que pouco passam de entrecruzamento de citações de autorizados pelo corpus do departamento a que o acadêmico está atrelado. A ideia é aproveitar a liberdade para fazer algo melhor que uma produção cujo fim é engordar currículo e manter a indústria de revistas científicas.
Busca-se liberdade de criação enquanto se ergue uma nova comunidade — ou seja, não queremos o solipsismo de apenas dar as costas para o stablishment e fazer do jeito que se quer, não estamos falando neste nível mais tosco de individualismo. Falamos de personalismo. Em um dos capítulos dá-se atenção a este ponto, o que fazer para criar correntes de leitores e parceiros com que possamos falar sem o policiamento institucional.
Isso não tem só a ver com o conteúdo, que é a preocupação do que nos vem quando nos lembramos do crescente de censura promovida pela grande mídia, pelos Estados e, bizarramente, pelos departamentos universitários. Tem a ver com forma, do que trato a falar por fim.
O ensaio enquanto laboratorium
A epígrafe do livro é o seguinte trecho de Ralph Waldo Emerson, retirado de Self-Reliance:
Fale o que você pensa agora com palavras duras, e amanhã fale o que pensa amanhã com palavras duras novamente, ainda que isso contradiga tudo o que você disse hoje. — 'Ah, assim você certamente será mal interpretado.' — E é tão ruim assim ser mal interpretado? Pitágoras foi mal interpretado, e Sócrates, e Jesus, e Lutero, e Copérnico, e Galileu, e Newton, e todo espírito puro e sábio que já tomou forma humana. Ser grande é ser mal interpretado.
Por agora importa-me menos o chamado para exercer uma linguagem rebelde ao panopticon da vez, e mais pela forma ensaio em si. Tenho pensado muito nos sentidos originais do termo que designa o gênero, remetendo principalmente a dois de seus aspectos, o de tentativa e o de experiência.
Um é aquele montaigneano de fala irresponsável (no bom sentido) e despreocupado, sem imposição externa que remetea a uma unidade de conhecimento além da unidade da vida interior de quem escreve os ensaios.
Outro é o baconiano de experimento científico, de prova, no sentido de ciência da época em que os experimentos laboratoriais ainda guardavam muito de operação alquímica: o saber acerca de um dado exterior do mundo precisa também ser provado em sua verdade no amadurecimento enquanto realidade espiritual do sujeito que pensou e escreveu em forma cuidada literariamente. Ora et labora, labor + oratorium, laboratório.
Pensar as entradas da newsletter enquanto ensaios no sentido forte da palavra. Um dos livros do meu top pessoal de 2024 foi justamente a coletânea Doze ensaios sobre o ensaio, onde aqui e ali aparecia a preocupação acerca do uso frouxo dessa forma que tanto faz fama hoje em dia. Delimitar os contornos da forma literária, quando é do quid do ensaio essa indisciplina que o situa em vértice oposta à das teses na cruz da metafísica dos gêneros literários, é esforço que move vários dos textos compilados ali.
Murphy disse também em rede social sobre a necessidade de buscar formas literárias vitais, para que um pensamento poderoso possa circular com energia. Emerson é um bom exemplo de cultor do ensaio, ele que ainda hoje mantém-se vivo no ambiente cultural norte-americano. Por mais que eu discorde aqui e ali com o que ele diz em seus ensaios, não tem como não reconhecer que ele se impõe a partir de seus escritos como presença vital, real. O tipo de presença necessária num mundo de virtualidades, em que as possibilidades postas pela informática e pela internet são facilmente articuladas a serviço da incultura, da transformação de potenciais criadores em NPCs.